segunda-feira, junho 09, 2008

Cineasta detida desde Maio no Chile exige ser libertada

Artigo de Fernando Sousa, na edição impressa do PÚBLICO: "Elena Varela López receia que a polícia use o espólio do trabalho que fazia sobre a crise entre os mapuches e o Estado contra os seus entrevistados
No princípio de Maio a polícia chilena deteve e meteu nos calabouços da prisão de alta segurança de Rancagua uma documentalista, Elena Varela López, que trabalhava em casos incómodos. Mais de um mês depois ela continua detida, apesar dos protestos de realizadores e jornalistas e da organização Repórteres Sem Fronteiras. A imprensa de Santiago resume o caso, com base nas declarações oficiais, ou cala-o. É na Internet que a história corre.
"Escrevo-vos desta prisão sinistra e fria, onde não há árvores, nem flores, nem poesia, nem música, nem cantos", diz a jornalista na única carta que conseguiu escrever da cadeia onde não lhe permitem ler, ouvir rádio ou ver televisão. "Em nome da arte, da liberdade de expressão e da criação artística peço a minha liberdade", diz no fim.
Detida quando fazia um documentário sobre o drama da comunidade índia mapuche - "Newen Mapu Che, la fuerza de la gente de la tierra" - Elena Varela exige a restituição de todo o material que lhe foi confiscado. É que o espólio, já usado contra si, pode vir a ser utilizado contra as pessoas com quem falou.
A documentalista, com um largo currículo de obra feita na educação artística, fundadora de escolas de artes para crianças e jovens e autora de vários registos testemunhais, foi detida no dia 6 de Maio na sua casa em Licanray, perto do Lago Calafquén, no centro-sul do Chile, em circunstâncias que geraram protestos entre os colegas e cartas a La Moneda, sede da presidência chilena.
Os media noticiaram a detenção de Elena, e na altura de outras quatro pessoas, pelo seu alegado envolvimento em dois assaltos, um deles a um banco, em 2005, e ainda por terem recebido treino por parte do grupo de guerrilha colombiano Exército de Libertação Nacional, informação acompanhada na ocasião e nas semanas que se seguiram, por parte de procuradores, responsáveis governamentais e enfim da imprensa mais conservadora de expressões e comentários apontando para outros lados.
Por exemplo, um procurador referiu-se à qualidade "ex-mirista", o Movimento da Esquerda Revolucionária que atravessou a era de Salvador Allende e do regime militar, da documentalista. O porta-voz do Governo, Francisco Vidal, sugeriu que as autoridades culturais deveriam prestar de futuro mais atenção aos subsídios que concedem - "Newen" foi em parte apoiado pelo Conselho de Cultura (CNCA) e o Fundo Audiovisual (CORFU). E a antiga militância política da detida foi frequentemente título na imprensa, desde logo no diário El Mercúrio.

Detenção gera protestos

Duas semanas depois da prisão de Elena, vários intelectuais, incluindo dois prémios nacionais de Jornalismo, Faride Zéran e Juan Pablo Cárdenas, e um de Literatura, José Miguel Varas, exigiram um processo justo, a presunção de inocência e a liberdade provisória da documentalista. E, ao encontro da maior preocupação desta, o respeito e devolução por todos os registos confiscados numa "grave violação da liberdade de expressão, dos direitos de autor e do segredo profissional que protege as fontes de uma reportagem jornalística".
Em Paris, a organização Repórteres Sem Fronteiras escreveu uma carta à Presidente chilena, Michelle Bachelet, manifestando a sua inquietação sobre o caso. A mensagem sublinha em particular a circunstância da cineasta ter sido detida quando filmava "Newen" e de todo o seu material de trabalho ter sido apreendido.
A polícia levou consigo gravações, entrevistas, incluindo antigos militantes e actuais activistas mapuches, material de artes, bandeiras da época, lenços, cartazes, guiões, diários, livros. "[...] Duvido da forma e do uso que farão com estes relatos históricos, já que estão a utilizá-los contra mim para me envolverem numa história que não conseguiram resolver", escreve Elena na carta de Rancagua, onde compara a judiciária à antiga polícia política do regime do general Augusto Pinochet (1973-1990).
Elena Varela López estudava há quatro anos o conflito entre a comunidade mapuche, a principal etnia chilena, e as empresas florestais, principalmente na zona da Araucanía, ao lado de cujos interesses o Estado aparece muitas vezes. Os indígenas querem salvar as suas terras e os seus lugares santos, numa área cada vez mais devastada por madeireiros e mineiros. No pico da crise, chegaram a fazer ocupações e a incendiar camionetas, ao que os carabineiros responderam com vagas de detenções e mesmo a tiro.
Ainda vigora no Chile a legislação antiterrorismo feita durante a ditadura. "Newen Mapu Che", cuja parte feita pode ser vista no YouTube, era para ser sobre tudo isto.

"Em nome da arte, peço a minha liberdade!"
Elena López escreveu no dia 14 de Maio da sua cela em Rancágua uma carta ao Conselho da Cultura e ao Fundo Audiovisual, em que pede a sua libertação, de que publicamos excertos:
"[...] Escrevo-vos desta prisão sinistra e fria, onde não há árvores, nem flores, nem poesia, nem música, nem cantos."
"[...] Há anos, desde que comecei a dar-me conta de que existiam as coisas bonitas da natureza.[...] Mas não existem só essas coisas saborosas na vida. Também há injustiças, há histórias tristes na nossa humanidade."
"[...] Na minha criação busquei as histórias de grupos sociais e políticos que sofreram atropelos em matéria de direitos humanos ou outro tipo de processo político, cultural e social. Pela minha câmara passaram todo o tipo de actores sociais, personagens, alguns perseguidos antes e agora. Porque sou documentalista, sou cineasta e sou artista."
"[...] Em nome da arte, peço a minha liberdade!"

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