No PÚBLICO de 1 de Fevereiro, por Fernando Sousa:
"Os bolivianos aprovaram uma Constituição onde bate o coração das comunidades indígenas. Há um movimento de fundo na região
A aprovação há uma semana da nova Constituição na Bolívia, a primeira indigenista do mundo, reavivou a questão dos povos originários na América Latina. Há ali um despertar de mágicos. Não todo igual, mas há.
O diário espanhol El País escrevia no dia a seguir à consulta boliviana que a wiphala, a bandeira do império inca, foi vista ao vento em vários povoados do Noroeste da Argentina. O símbolo tem sete cores, do vermelho ao azul, ou da terra ao espaço cósmico. Vale a pena ver o resto das cores e perceber uma série de coisas.
Falar da questão indígena é falar dos territórios das comunidades dos avós, e dos avós dos avós, mais tudo o que neles nasce, cresce, a cultura que abarca isso, que as populações querem legar aos filhos tão puros como receberam porque as leis são insuficientes ou simplesmente não existem.
O caso argentino nem é o mais tenso. A Constituição, de 1994, reconhece a diaguitas, guaranis, wichis, tobas, kollas ou mapuches muitos dos direitos que reivindicam.
Na Venezuela e no Equador, as leis constitucionais já vão muito ao encontro dos nativos. O exemplo equatoriano é, aliás, bom: depois da confusão dos últimos anos da década de 1990 e dos primeiros desta, e dos aproveitamentos que Lúcio Gutiérrez (2003-2005) fez das maiorias esquecidas e ansiosas por um líder, uma solução, a poderosa confederação indígena parece ter alinhado com o Presidente socialista Rafael Caldera. As reivindicações continuam mas sem recontros.
As autoridades paraguaias também têm feito algum esforço de inclusão de alguns direitos indígenas. Por exemplo, a maior parte da população fala guarani, a segunda língua oficial depois do castelhano. Mas os nativos continuam à margem do poder branco ou mestiço e com muita dificuldade em manter as suas terras.
E os casos mais ou menos pacíficos acabam por aqui: o resto são tensões mais ou menos controladas.
Ondas de protesto
O Peru e a Colômbia, dois dos países com Constituições favoráveis às suas comunidades índias, enfrentam ondas de protestos. Os motivos são, para resumir, dois: a fluidez do mero reconhecimento institucional dos direitos em causa e o incumprimento do Convénio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Declaração das Nações Unidas sobre Povos Indígenas.
A norma da OIT garante os direitos territoriais, sociais, culturais e económicos dos povos autóctones; a outra recomenda, por exemplo, que não haja operações militares nas zonas protegidas.
Na Amazónia peruana, os indígenas lutam desde Agosto pela derrogação de vários decretos que promovem o investimento privado nas suas terras. O Governo de Alan García argumenta que o convénio não dá às comunidades o direito de vetar actividades nos seus territórios e vem argumentando que a declaração da ONU não tem carácter vinculante.
Perder a fé
Post-it: como aconteceu no Equador, com Gutiérrez, o eleitorado andino torceu por Alejandro Toledo (2001-2006), no Peru, e vibrou com a sua patética tomada de posse no Machu Pichu, para depois se arrepender e perder a fé nos presidentes do país.
O problema colombiano é pior: o Estado não cumpre o diploma da OIT, que também assinou, como continua a recusar a adesão à declaração da ONU. No primeiro caso, não submete sequer aos indígenas os projectos de investimento privados nas suas terras. No segundo, por não ser parte, não se acha obrigado a parar as actividades militares nos seus territórios.
Entre os 44,6 milhões de habitantes do país, 1,6 são indígenas, apanhados no fogo da guerra entre outros às FARC, os rebeldes comunistas. O conflito mata um nativo em cada 53 horas. Se tivesse aderido ao diploma, Bogotá teria de suspender as operações ou pelo menos de falar com as tribos. Foi este um dos contextos da revolta indígena de há três meses.
No Chile, o levantamento mapuche está ao rubro embora não se note. Activistas de uma das nações mais irredutíveis do continente estão permanentemente em revolta - e a ir para a prisão, quando não são mortos. O problema é o mesmo dos outros lados: a terra. Mas aqui agravado pela impiedosa aplicação de leis antiterroristas do tempo da ditadura militar que continuam em vigor.
Outro imbróglio: o México. O país foi dos primeiros a ratificar o Convénio 169 da OIT, em 1990. A revolta de Chiapas obrigou-o a olhar para as suas minorias, no fim de 1993, e a reconhecer a pluriculturalidade da sociedade mexicana e os direitos dos naturais na revisão constitucional de 2001. Mas o Estado continua a insistir que é ele, e só ele, que deve determinar o destino das terras dos maias e de outros.
A população mexicana ascende a 105 milhões de pessoas. Destas, 11 milhões são indígenas, dispersos por 62 etnias, tão apegadas como as outras da América Latina às suas terras. E se por agora estão em paz, podem deixar de estar, como aconteceu, quando ninguém esperava, há 15 anos, quando os camponeses tzotziles e de outros grupos do subcomandante Marcos irromperam por aldeias e cidades de uma noite para a outra.
Por fim o caso dos índios da Raposa Serra do Sol, no Brasil, ilustra como os povos originários também estão a levantar voz num dos países mais problemáticos da região. Reclamaram do seu direito à terra, o Presidente Lula da Silva pôs-se ao seu lado e o Supremo Tribunal de Justiça decidiu a ser favor.
Os magistrados acharam em substância que a demarcação contínua do território índio era essencial ao modo de vida dos seus habitantes, contra o que queriam os fazendeiros. Só ficou de fora o acesso das forças de segurança à zona se for caso disso e esse outro problema, que sobra, que é o dos direitos de exploração dos recursos naturais, em nome da "soberania" nacional. A questão ainda não acabou, mas é difícil que recue.
Pelas terras e pela vida
A causa da Raposa Serra do Sol é só um exemplo. A luta indígena no Brasil, pelas terras e pela própria vida - a violência contra os povos nativos caiu 40 por cento em 2008 mas mesmo assim 53 pessoas ainda foram assassinadas durante o ano -, é diária. A capacidade de mobilização das organizações de direitos humanos dedicadas ao problema é enorme. Aproveitam todas as oportunidades para falarem de si. Se for caso disso, até acampam na Baixa de São Paulo. E mandam embaixadas ao estrangeiro.
Um dos exemplos desse activismo está aí, no Fórum Social de Belém. Dois mil índios participaram nos trabalhos, incluindo muitos líderes comunitários da Argentina, Peru, Venezuela, México e Estados Unidos. Um dos pontos altos foi quando todos dançaram com dirigentes africanos com problemas semelhantes em volta da frase "Salvem a Amazónia", que não é só por onde respira o mundo, é também onde respiram milhares de indígenas." [notícia completa]
Sem comentários:
Enviar um comentário